MAÍRA BOGO BRUNO[1]
SILVANA LOVERA SILVA[2]
(orientadores)
RESUMO: O presente trabalho envolve um estudo relacionado a possibilidade da declaração de constitucionalidade do aborto no Brasil, através da aplicação do princípio da proporcionalidade. O desenvolvimento desse estudo tem como objetivo geral demonstrar se o aborto é constitucional ou não, utilizando-se da técnica da ponderação, desenvolvida por Robert Alexy. Durante o estudo são apresentados conceitos relacionados à temática desenvolvida, julgados do Supremo Tribunal Federal que fundamentaram as decisões no princípio em apreço, bem como a aplicação da técnica da ponderação no caso de aborto. Em relação a metodologia, o método de abordagem teórica é o dedutivo, a pesquisa é a exploratória bibliográfica e documental e a técnica é a qualitativa de análise de dados. Através da pesquisa realizada, verifica-se que em uma colisão entre os direitos fundamentais da gestante, tais como a liberdade, autonomia privada, direitos reprodutivos/sexuais, igualdade e dignidade humana, e o direito do nascituro de nascer com vida, aqueles são preponderantes, pois a criminalização do aborto não é uma medida efetiva. Necessita-se que o Estado promova políticas públicas para levar educação e desenvolvimento econômico à sociedade e evitar que mulheres procurem clínicas clandestinas para realizarem o aborto de forma inadequada e ofensiva à saúde. Com a técnica da ponderação, é possível declarar o aborto constitucional, porque a criminalização atinge gravemente os direitos da gestante e não é uma medida adequada e proporcional. Destaca-se ainda que se o Estado promovesse políticas públicas de apoio às gestantes o número de abortos poderia diminuir, porque as mulheres poderiam até mudar de ideia durante o tratamento, ao passar por consultas com psicólogos, médicos, e o direito do nascituro de nascer com vida não precisaria ser sacrificado, ao ser levado desenvolvimento educacional e socioeconômico à sociedade.
Palavras-chave: Princípio da proporcionalidade; Robert Alexy; Colisão de direitos fundamentais; Aborto; constitucionalidade.
ABSTRACT: This paper involves a study related to the possibility of declaring the constitutionality of abort in Brazil, through the application of the principle of proportionality. The development of this study aims to demonstrate whether abortion is constitutional or not, using the technique of weighting developed by Robert Alexy. During the study, concepts related to the developed theme are presented, judgements of the Supreme Court that based their decisions on the principle under consideration, as well as the application of the weighting technique in the case of abortion. Regarding the methodology, the theoretical approach method is deductive, the research is exploratory bibliographic and documentary and the technique is qualitative data analysis. Through the research carried out, it appears that in a collision between the fundamental rights of pregnant women, such as freedom, private autonomy, reproductive/sexual rights, equality and human dignity, and the right of the unborn child to be born alive, those are preponderant, as the criminalization of abortion is not an effective measure. It is necessary for the State to promote public policies to bring education and economic development to society and prevent women from seeking clandestine clinics to perform abortions in an inappropriate and offensive way to health. With the technique of weighting, it is possible to declare abortion constitutional, because criminalization seriously affects the rights of pregnant women and is not an adequate and proportional measure. It is also highlighted that, if the State promoted public policies to support pregnant women, the number of abortions could decrease, because pregnant women could even change their minds during treatment, when going through consultations with psychologists, doctors, and the right of the unborn child to be born alive would not need to be sacrificed, when educational and socioeconomic development is brought to society.
Keyword: Principle of proportionality; Robert Alexy; Collision of fundamental rights; Abortion; constitutionality.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade passa por um processo de evolução significativo no decorrer do tempo, gerações mudam, necessidades sociais surgem e, consequentemente, o direito precisa acompanhar esse avanço. A Constituição Federal brasileira de 1988 traz em seu artigo 5º direitos fundamentais, os quais, muitas das vezes, diante de situações concretas e em decorrência da relativização deles, acabam se colidindo.
No período pós-guerra, surgiram novas concepções teóricas e havia um movimento de transição do positivismo puro para ideais jusfilosóficos, que mais tarde ficou conhecido como neoconstitucionalismo (MAIA; CARNEIRO, 2013). O jurista Ronald Dworkin realizou estudos e desenvolveu a sua teoria sobre direitos fundamentais, todavia, não analisou a solução de colisões. Outrossim, o professor alemão Robert Alexy, elaborou a sua teoria sobre direitos fundamentais e desenvolveu a técnica da ponderação, utilizando-se do princípio da proporcionalidade.
A ponderação consiste em um exame analítico e específico de colisão entre direitos e princípios fundamentais, considerando a intensidade que determinado direito será restringido em detrimento do outro direito colidente, buscando a proteção daquele que se sobrepõe diante do caso concreto (CARDOSO, 2016).
A proporcionalidade é uma técnica de interpretação analítica que possibilita solucionar conflitos entre direitos e princípios fundamentais, em dada situação concreta, declarando determinado ato ou determinada lei/norma (in)constitucional (TAVARES, 2019). A título de exemplo, pode-se falar no aborto, por ser um tema que coloca em colisão os direitos fundamentais da gestante e os direitos fundamentais do nascituro. E é exatamente focado nessa temática que será desenvolvida uma linha de raciocínio com foco na possibilidade ou impossibilidade de declaração da constitucionalidade do aborto no Brasil através da aplicação do princípio da proporcionalidade.
Diante disto, a problemática desenvolvida se traduz na seguinte indagação: a aplicação do princípio da proporcionalidade é técnica de interpretação cabal para fundamentar a declaração de constitucionalidade ou não do aborto no Brasil?
O desenvolvimento desse estudo tem como objetivo geral demonstrar se o aborto é constitucional ou não, utilizando-se da técnica da ponderação. Para tanto, são objetivos específicos a serem alcançados nessa pesquisa: a) conceituar o princípio da proporcionalidade, levando-se consideração a sua aplicação como instrumento analítico de resolução de conflitos entre direitos e princípios fundamentais; b) apresentar alguns julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) em que foi aplicada a técnica da proporcionalidade; c) explicar o conceito de aborto, as modalidades existentes e a ocorrência no Brasil; e d) aplicar a técnica da ponderação na colisão existente entre os direitos fundamentais da mulher e do nascituro, averiguando a constitucionalidade do aborto.
O método de abordagem teórica desenvolvido será o dedutivo, a metodologia de pesquisa utilizada será a exploratória bibliográfica e documental, bem como, será aplicada no estudo a técnica qualitativa de análise de dados.
O primeiro capítulo terá por finalidade conceituar o princípio da proporcionalidade, apresentando, brevemente, as contribuições teóricas de Ronald Dworkin sobre a teoria dos direitos fundamentais, bem como a teoria do jurista Robert Alexy atinente à técnica da proporcionalidade, a partir dos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, e contextualizando com a aplicação do referido princípio no ordenamento jurídico brasileiro.
No segundo capítulo serão apresentados julgados do STF que incidiu a aplicação do princípio da proporcionalidade como instrumento analítico de solução de colisões entre princípios e direitos fundamentais, utilizando-se da técnica da ponderação, como se pode observar no Recurso Extraordinário nº. 1249715, na ADI nº. 5139 e na ADI n.º 3.510.
O último capítulo será desenvolvido com enfoque no princípio da proporcionalidade e sua aplicação nos casos relacionados ao aborto, a fim de entender o conceito de aborto, as modalidades existentes e a ocorrência no Brasil, através das disposições trazidas pelo Código Penal, pela doutrina e pela jurisprudência, especificamente julgados do STF, a exemplo da ADPF nº. 54.
Ainda sobre o último capítulo, será estudada a técnica da proporcionalidade de forma mais específica, averiguando se o aborto pode ser declarado constitucional ou não, considerando os direitos fundamentais colidentes da gestante e do nascituro e realizando os exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação propriamente dita.
É necessário ressaltar que o tema apresentado, em decorrência de sua relevância, gera um debate social e jurídico, em que são invocados as liberdades, a igualdade social e financeira, a saúde pública e o direito à vida. Daí dessume-se a importância para a sociedade e para a seara jurídica deste estudo, haja vista a complexidade do tema, as consequências da criminalização do aborto para a gestante, as consequências da descriminalização para o nascituro e a necessidade de se resolver o conflito entre os direitos fundamentais da gestante e do nascituro.
2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO UM INSTRUMENTO ANALÍTICO DE RESOLUÇÃO DE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Em um ordenamento jurídico existem regras e princípios que norteiam o funcionamento da atividade jurisdicional e do comportamento social. Na medida que a sociedade evolui e busca satisfazer os anseios, o direito precisa acompanhá-la, a fim de garantir a segurança jurídica e a ordem social. Em concomitância a essa evolução, observa-se que as normas existentes são acionadas diante de situações concretas, o que possibilita variações na proteção de direitos fundamentais e consequentemente ocasiona a colisão entre eles.
Vislumbra-se que a necessidade de solucionar colisões entre direitos surge em um contexto de desenvolvimento de uma nova Teoria do Direito, em um período de pós-guerra, quando juristas, pensadores e filósofos traçaram teorias e desenvolveram pensamentos enfatizando ideais jusfilosóficos, ao passo que o positivismo jurídico lógico foi perdendo um pouco de impulso (MAIA; CARNEIRO, 2013). Isto porque uma nova ordem social, econômica e jurídica estava em um processo de construção nos meados do século XX, movimento este denominado de neoconstitucionalismo (MAIA; CARNEIRO, 2013).
2.1 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE A PARTIR DA TEORIA DE ROBERT ALEXY
Inicialmente, é importante observar que apesar do pensamento positivista perder força, não deixou de fazer parte das discussões e dos pensamentos doutrinários nos sistemas jurídicos, em razão da forte influência e contribuições de pensadores como Kelsen, Hart e Bobbio (MAIA; CARNEIRO, 2013).
Nesse contexto de desenvolvimento de pensamentos e concepções no período pós-guerra, outros estudos foram desenvolvidos, como por exemplo, a Teoria Constitucional (THEODORO FILHO, 2016). Os juristas Dworkin e Alexy desenvolveram estudos teóricos relacionados a regras, princípios e a distinção entre ambos, bem como aos direitos fundamentais e as consequentes colisões que podem existir entre eles numa sociedade que passa por um processo de mudanças e evoluções (THEODORO FILHO, 2016). Destaca-se que os pensamentos e as teorias desenvolvidas por ambos influenciam e são importantes para a efetivação da atividade jurisdicional no Brasil, na contemporaneidade (THEODORO FILHO, 2016).
O jurista norte-americano Dworkin desenvolveu uma teoria do direito, voltada para o liberalismo de princípios, tendo como percussores a liberdade e a igualdade, enfatizando uma posição crítica ao positivismo jurídico (INTRODUÇÃO..., 2020). O professor em comento desenvolveu seu pensamento abrangendo a filosofia, a política, a moral, a literatura, bem como expandiu os estudos na teoria da interpretação, no contexto do constitucionalismo no pós-guerra (INTRODUÇÃO..., 2020).
A teoria de Dworkin se desenvolve, principalmente, sob o prisma do direito como integridade. O jurista em apreço entende que o direito é uma “instituição” formada pela unicidade e integração dos princípios e das regras que compõem um sistema jurídico, devendo as decisões, especialmente as judiciais, levarem em consideração essa formação para decidir de forma mais equitativa, a partir de um método interpretativo (ABDOUCH, 2017). Nesse contexto, Abdouch (2017, p. 9), explica que “os juízes devem procurar na integridade do direito a melhor interpretação possível, que servirá de resposta certa para o problema trazido pelo caso.”
Outrossim, Dworkin (2002 apud DIAS JÚNIOR, 2007) contribuiu para a seara jurídica ao desenvolver um estudo da teoria do direito voltada para a valorização dos princípios como sendo normas basilares de uma ordem jurídica, tendo aspectos diferentes se comparados com as regras, que, juntamente com aqueles, compõem o ordenamento jurídico.
Dworkin (2002 apud DIAS JÚNIOR, 2007), define regras como sendo uma espécie normativa com limitado grau de abstração, que possui estrutura de tudo ou nada, ou seja, há aplicação ou não há aplicação diante de determinado contexto apresentado, não possuem dimensão de peso, e, em caso de conflito, uma das regras colidentes será considerada inválida. E por outro lado, diz que princípios são normas que possuem maior grau de abstração, não possuem a relação de tudo ou nada, possuem a dimensão de peso, e, em caso de colisão, é necessário analisar a relatividade de cada princípio para se chegar a uma decisão em determinado caso concreto (ABDOUCH, 2017).
O jurista alemão Alexy, por sua vez, elaborou, dentre outras, a Teoria dos Direitos Fundamentais e fez uma complementação à teoria desenvolvida por Dworkin, haja vista que este último não se preocupou, especificamente, a apresentar soluções concretas em situações que colocam em colisões direitos e princípios fundamentais.
Nessa perspectiva, há de se ressaltar que, através de uma teoria argumentativa e de discurso, Alexy apresentou suas contribuições para buscar uma gestão racional e correta da atividade jurisdicional exercida no direito alemão (BEBER; BITENCOURT, 2014).
Antes de adentrar propriamente nas contribuições de Alexy (2008) acerca das colisões entre direitos e princípios fundamentais e a técnica da proporcionalidade, é necessário entender as distinções entre regras e princípios apresentadas pelo pensador em comento.
Alexy (2008) ensina que é importante diferenciar princípios e regras, para possibilitar uma concepção mais analítica de direitos fundamentais e eventuais colisões deles decorrentes. Para ele, os princípios consistem em mandamentos basilares de caráter genérico, que visam arquitetar o funcionamento de determinado ordenamento jurídico, são considerados mandados de otimização e possuem cumprimento gradual na medida das possibilidades fáticas e jurídicas.
As regras, por sua vez, segundo Alexy (2008), consistem em mandamentos definitivos de aplicabilidade concreta, sem margem para desdobramentos interpretativos, ou seja, ou são aplicadas ou não são aplicadas. Estes dois elementos, na concepção de Alexy (2008) são espécies de normas. Porquanto, princípios e regras são considerados normas.
Alexy (2008) teoriza que o princípio da proporcionalidade possui raízes no direito alemão, no direito comparado. Destaca-se ainda que o referido mandamento se expandiu para o Brasil, embora não exista previsão expressa no texto constitucional, tornando-se teoricamente um instrumento com potencial para resolver colisões entre direitos fundamentais (ALEXY 2008).
Nesse sentido, com o intuito de evitar insegurança jurídica em decorrência da restrição de determinado direito em face de outro, perpassando a esfera do equilíbrio e da proporção, a técnica da proporcionalidade deve passar pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, considerados como subprincípios da proporcionalidade (SILVA, 2002).
O subprincípio da adequação consiste em uma técnica que se busca alcançar um objetivo através de um meio específico. Caso esse meio seja capaz de concretizar o objetivo pretendido, a medida a ser utilizada é considerada adequada (CARDOSO, 2016). A título de exemplo, Cardoso (2016) cita a situação em que o Estado determina, através de lei, que o uso de capacete no carro seja obrigatório, a fim de proteger a saúde e a integridade física das pessoas, o que demonstra tratar-se de uma medida adequada, haja vista que de fato cumpre o objetivo pretendido (proteger a integridade física).
O subprincípio da necessidade, por sua vez, consiste em um exame comparativo realizado entre a gravidade do meio escolhido e o objetivo pretendido. O autor Cardoso (2016, p. 149), explica que “o primeiro passo é verificar qual é o direito que está sendo restringido e depois pensar em outras medidas tão eficazes quanto, porém menos gravosas, efetuando-se a comparação supramencionada.” Utilizando-se ainda do exemplo da lei que determina o uso de capacetes quando estiver dirigindo o carro, necessário se faz indagar se existe outras medidas menos gravosas para serem aplicadas. E a resposta é positiva, haja vista que o sinto de segurança é algo mais adequado para a situação, logo, a medida determinada pelo Estado, através da lei, não é necessária, tampouco proporcional (CARDOSO, 2016).
E o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito é um exame pelo qual se verifica a intensidade da restrição do direito atingido e a importância da efetivação do outro direito colidente (CARDOSO, 2016). Em resumo, este último exame tem como objetivo “apontar qual direito, em determinado caso concreto, deve ser protegido: o direito atingido com a medida ou o direito que a medida quis prestigiar.” (CARDOSO, 2016, p. 149). Cumpre observar ainda que este exame não consiste apenas na simples menção nas decisões, é necessário fundamentar a utilização dessa técnica para resolver eventuais colisões.
De uma forma geral, a técnica da ponderação consiste em um exame analítico e específico de colisão entre direitos e princípios fundamentais, considerando a intensidade que determinado direito será restringido em detrimento do outro direito colidente, buscando a proteção daquele que se sobrepõe diante do caso concreto (CARDOSO, 2016).
Após feita a apresentação dos exames da proporcionalidade, interessante também entender o contexto de inserção dos direitos fundamentais no Brasil, bem como apresentar brevemente o conceito e as características deles.
2.2 RESOLUÇÃO DE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS POR MEIO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O pós-guerra foi um período de fortalecimento e concretização dos direitos fundamentais no contexto jurídico-social de vários Estados, e no Brasil não foi diferente. A Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, é um exemplo da implementação de direitos fundamentais no contexto nacional (MAIA; CARNEIRO, 2013).
Pois bem, direito fundamental pode ser conceituado, conforme ensinamentos de Moraes (2020, p. 165), como “direitos subjetivos, assentes no direito objetivo, positivados no texto constitucional, ou não, com aplicação nas relações das pessoas com o Estado ou na sociedade.” Sobre esses direitos, Barroso (2019), assevera que não possuem caráter absoluto, o exercício é limitado e eles são organizados como princípios, o que melhor possibilita a aplicação mediante ponderação.
Os direitos fundamentais, a partir de uma análise conceitual e prática, possuem algumas características importantes que os definem, sendo elas: inalienabilidade, historicidade, imprescritibilidade, indisponibilidade, indivisibilidade, relatividade, entre outras. No que diz respeito a inalienabilidade, Moraes (2020) ensina que os direitos fundamentais, em regra, não podem ser alienados, ou seja, não podem ser vendidos, doados, emprestados. A característica da historicidade traduz-se na ideia de que os direitos fundamentais são uma construção histórica, isto é, as definições e a teorias variam de época para época e de lugar para lugar (MORAES, 2020).
A imprescritibilidade é uma característica dos direitos fundamentais, haja vista que estes não se perdem pela passagem do tempo; outra característica é a indisponibilidade, ou seja, os direitos em comento são indisponíveis e interessa à sociedade, de forma coletiva; e existe também a indivisibilidade, que consiste na ideia de que os direitos fundamentais são um conjunto e não podem ser analisados de maneira separada, isolada (CAVALCANTE FILHO, [202-?]).
Outra característica dos direitos fundamentais é a relatividade, que se traduz na ideia de que nenhum direito fundamental é absoluto (MORAES, 2020). É necessário destacar que existem limitações na incidência desses direitos no sistema jurídico brasileiro para assegurar o equilíbrio social e a segurança jurídica, diante das mutações da sociedade e do ordenamento jurídico (MORAES, 2020).
O jurista Moraes (2021, p. 61), explica essa característica se referindo ao que ele chama de princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas, enfatizando a ideia de que “os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna.” Vale destacar que não existe hierarquia positivada entre os postulados fundamentais, até mesmo o direito à vida não possui caráter absoluto, embora é comum que seja visto dessa forma, como sendo o direito mais importante de um ordenamento jurídico (MARTINS, 2009).
Outrossim, cumpre deliberar que a relatividade possui uma relação direta e indireta com colisões entre direitos fundamentais, surgindo a necessidade de ponderar pesos e valores desses direitos, bem como realizar uma análise minuciosa entre eles, consubstanciada nos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito (MORAES, 2020).
Vislumbra-se que não há previsão expressa do princípio da proporcionalidade na Constituição Federal de 1988, mas a construção doutrinária desenvolvida por Dworkin e Alexy influenciou e ainda influencia o ordenamento jurídico brasileiro, considerando as contribuições atinentes aos direitos fundamentais e as consequentes colisões decorrentes da constante evolução do direito e da sociedade (TAVARES, 2019).
Faz-se necessário deliberar que a técnica da proporcionalidade no contexto jurídico brasileiro pode recair em um possível problema de aplicação teórica que Alexy se preocupava, qual seja, a utilização dos ideais teóricos sem a devida fundamentação e sem utilizar corretamente e de forma analítica a técnica da ponderação para as tomadas de decisões, dando espaço para a discricionariedade e a arbitrariedade (MAIA; CARNEIRO, 2013).
O autor Tavares (2019, p. 663), ensina que o princípio da proporcionalidade consiste em “relevante instrumento de solução de conflitos na medida em que se apresenta como mandamento de otimização de princípios, ou seja, como critério de sopesamento de princípios quando estes conflitam em dada situação concreta.”
O princípio da proporcionalidade, como verificado, é um instrumento de resolução de colisões entre direitos fundamentais ou princípios fundamentais, a partir de um exame analítico que leva em consideração a sobreposição de um direito sobre o outro, buscando o equilíbrio e a segurança jurídica (SILVA, 2002).
Outrossim, Silva (2002, p. 24) explica que a máxima da proporcionalidade é um instrumento de interpretação e aplicação do direito desenvolvido para solucionar colisões existentes, por exemplo, em um determinado caso em que “um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais.”
Alexy (2008) delibera também que a proporcionalidade tem como objetivo equilibrar os direitos fundamentais em uma eventual colisão, sem que a sobreposição de um direito sobre o outro ocasione restrições em dimensões desproporcionais. Ele explica que “se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder.” (ALEXY, 2008, p. 93).
Um exemplo fático que gera colisão entre direitos fundamentais é o aborto, haja vista que, conforme será estudado no terceiro capítulo, de um lado tem-se os direitos inerentes à gestante e do outro lado colidente tem-se os direitos intrínsecos ao nascituro. Esta colisão precisa ser solucionada de forma proporcional e com equilíbrio, a fim de garantir segurança jurídica e desenvolvimento jurisdicional.
Outrossim, será desenvolvido no próximo capítulo, através da apresentação de julgados do Supremo Tribunal Federal, um estudo relacionado à aplicação do princípio da proporcionalidade em casos concretos envolvendo colisões entre direitos fundamentais.
3 JULGADOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RELACIONADOS A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Após feito um estudo no primeiro capítulo acerca das contribuições do jurista Dworkin e do professor Alexy para o sistema jurídico internacional, bem como o brasileiro, este último teorizando o princípio da proporcionalidade e a técnica da ponderação como ferramenta de solução de colisão entre direitos e princípios fundamentais, agora faz-se necessário trazer esse contexto teórico para a realidade jurídica brasileira, especialmente apresentando julgados do Supremo Tribunal Federal que fundamentaram no princípio da proporcionalidade a tomada de decisões, diante de casos concretos que apresentavam colisão entre direitos fundamentais.
Observa-se que o princípio da proporcionalidade, na concepção de Alexy (2008), se divide em três exames, para possibilitar a solução de determinado caso concreto, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Esses exames, como o próprio nome diz, fomentam a análise pormenorizada de casos que colocam em colisão direitos fundamentais. Nesse aspecto, o presente estudo se desenvolverá nessa perspectiva de entender como a Suprema Corte aplicou a técnica da ponderação em decisões e se, de fato, essa técnica foi aplicada.
O Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 1249715, pautou-se no princípio da proporcionalidade e razoabilidade para resolver uma colisão entre o direito a saúde e o direito a livre iniciativa, no contexto em que uma lei estadual (Lei n.º 16.796/2018, de São Paulo) determinava que os comerciantes diferenciassem a cor do copo a ser utilizado para refrigerantes com açúcar zero (BRASIL, 2020).
Essa demanda refere-se a dois agravos regimentais interpostos pelo Estado de São Paulo e pela Assembleia Legislativa de São Paulo em desfavor de uma decisão, de juízo monocrático, que deu provimento ao RE n.º 1249715, sob o argumento de que o princípio da livre iniciativa está sendo violado diante do contexto fático orquestrado (BRASIL, 2020).
No seu voto, o Relator, o Ministro Mendes, entendeu que a legislação retro é desproporcional e fere a razoabilidade, razão pela qual, a lei impugnada deve ser declarada inconstitucional (BRASIL, 2020). Outrossim, o jurista em apreço dispõe que “as finalidades pretendidas pela norma impugnada não legitimam a profunda limitação à livre iniciativa, uma vez que tal objetivo pode ser realizado por outras vias menos restritivas ao direito constitucional do recorrente.” (BRASIL, 2020, p. 5). Acompanhando o Relator, a Segunda Turma do STF, por unanimidade dos votos, negou provimento ao agravo regimental.
Outro julgado do Supremo Tribunal Federal que se pautou no princípio da proporcionalidade foi referente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5139. Esta ADI foi ajuizada pelo Governador de Alagoas, que requereu a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 2º da Lei estadual n.º 7.508/2013, sob o argumento de que a norma impugnada contraria os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e do devido processo legal substantivo, previstos no art. 5º, inc. LIV, da Constituição da República (BRASIL, 2019b). A lei em apreço, que tem como tema a educação inclusiva, “determina que os estabelecimentos de ensino fundamental, médio, superior, públicos e privados, e cursos de extensão disponibilizem cadeiras adaptadas para alunos portadores de deficiência física ou mobilidade reduzida.” (BRASIL, 2019b, p. 1).
No julgamento, a Ministra Relatora Lúcia, em seu voto, entendeu que a lei impugnada é constitucional e a matéria tratada nela é adequada e atinge a finalidade pretendida, sob o argumento de que o objetivo da norma em debate é assegurar aos alunos portadores de deficiência a acessibilidade nos estabelecimentos de ensino (BRASIL, 2019b). A julgadora em comento, assevera, todavia, que é “desnecessária a determinação de que o número de cadeiras adaptadas correspondesse no mínimo ao número total de alunos regularmente matriculados em cada sala, com deficiência ou não.” (BRASIL, 2019b, p. 15-16). Para ela, essa medida é desproporcional e desarrazoada, considerando que o número mínimo de cadeiras adaptadas deve ser correspondente a quantidade de alunos que são portadores de alguma deficiência.
A ministra Lúcia julgou parcialmente procedente a demanda, para que seja conferida interpretação constitucional ao trecho da lei que dispõe sobre a destinação das cadeiras adaptadas, passando a considerar a quantidade de alunos portadores de deficiência matriculados e não a quantidade de alunos matriculados (BRASIL, 2019b). Por conseguinte, os ministros, por unanimidade, julgaram o feito parcialmente procedente, nos termos do voto da Relatora (BRASIL, 2019b).
O STF também julgou a ADI n.º 3.510, pautando-se na ponderação de princípios. Essa demanda foi proposta pelo então Procurador-Geral da República, Fonteles, tendo como enfoque a Lei da Biossegurança, especialmente o artigo 5º (Lei nº. 11.105/05) (BRASIL, 2010). Cumpre destacar que este dispositivo impugnado trata da “utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por meio de fertilização in vitro, e não utilizados no respectivo procedimento.” (BRASIL, 2010, p. 375).
O Procurador-Geral em questão sustentou que o direito à vida é inviolável e que o embrião humano é uma vida humana, necessitando de proteção, a fim de preservar também a dignidade humana (BRASIL, 2010). Destaca que no processo de fecundação e a partir dele já está configurada a vida humana, razão pela qual o dispositivo legal contestado contraria a inviolabilidade do direito à vida (BRASIL, 2010).
O Ministro Brito, relator da ADI em tela, apresentou o seu voto e entendeu que o dispositivo citado da Lei de Biossegurança é constitucional, sob, dentre outros, os argumentos de que pesquisas com célula-tronco embrionárias não infringi o direito à vida e que o uso dessas células em pesquisas científicas para fins terapêuticos está dentro da legalidade (BRASIL, 2010).
Destaca também, o ministro em apreço, que incide na demanda um viés pós-positivista no contexto do direito brasileiro, haja vista que a análise realizada está inserida numa realidade neoconstitucional (BRASIL, 2010). Outrossim, ressalta que a ADI em julgamento, especificamente o seu voto, passou por um “olhar conciliatório do nosso Ordenamento com os imperativos da ética humanista e justiça material”, (BRASIL, 2010, p. 207), em conjunto com os “fundamentos constitucionais do direito à saúde e à livre expressão científica.” (BRASIL, 2010, p. 207), para se chegar à conclusão de que a demanda deve ser julgada improcedente.
Os ministros presentes no Tribunal Pleno votaram, por maioria, acompanhando o ministro Relator, com algumas ressalvas apresentadas, e julgaram a ADI improcedente, para declarar a lei da biossegurança constitucional, com ênfase no princípio da proporcionalidade e as análises da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (BRASIL, 2010).
De uma forma geral, ficou constatada, no caso, a colisão entre o direito à vida do embrião e o direito da dignidade da pessoa humana como indivíduo-pessoa (MAIA; CARNEIRO, 2013). Além disso, no que diz respeito ao julgamento realizado pela Suprema Corte, “entendeu-se, por maioria dos votos, que não haveria vida a ser tutelada e, assim, não haveria o sacrifício do direito à vida”, (MAIA; CARNEIRO, 2013, p. 16), considerando que a Carta Magna não trata sobre a definição de vida e que o embrião é um organismo em desenvolvimento após o processo de fecundação, não havendo ainda a materialização do elemento vida (BRASIL, 2010).
Todavia, apresentados esses julgados, necessário se faz deliberar que a técnica da ponderação, idealizada pelo jurista Alexy, não é um instrumento genérico que visa resolver eventuais colisões entre direitos e princípios fundamentais, sem a devida fundamentação. Alexy (2008), ressalta que é necessário traçar um raciocínio lógico, com raízes na teoria da argumentação,[3] para que as decisões sejam tomadas a partir de uma sistemática cadeia de ideias. Nesse sentido, destaca-se que o jurista alemão citado “elaborou uma teoria analítica, que buscou, através de um procedimento válido, garantir um padrão de racionalidade para as decisões judiciais.” (MAIA; CARNEIRO, 2013, p. 17).
Pois bem, a partir da observação desses julgados da Suprema Corte brasileira, verifica-se que são feitas menções ao princípio da proporcionalidade, à razoabilidade, para fundamentar as decisões, todavia, não passa disso. Ou seja, “a teoria não se resume, como faz a jurisprudência brasileira, à proporcionalidade, adequação e razoabilidade, não se aplicam apenas pela simples menção a utilização.” (MAIA; CARNEIRO, 2013, p. 17).
No mesmo sentido o Supremo Tribunal Federal vem se baseando na proporcionalidade e razoabilidade para fundamentar, de forma genérica e sem um raciocínio analítico proposto por Alexy, a tomada de decisões, como se pode observar também em outros julgados.[4]
Embora alguns ministros da Suprema Corte brasileira fundamentam seus votos na máxima da proporcionalidade, como se pode verificar dos julgados apresentados, é nítido que os ensinamentos teóricos de Alexy não são, em sua integralidade, apesar da inspiração, aplicados no ordenamento jurídico brasileiro.
Primeiro porque o instrumento da proporcionalidade tem o condão de auxiliar o julgador de acordo com os exames da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, visando uma intepretação do direito de forma sistemática e especialmente ponderada, ainda mais quando se tem diante de um caso concreto a colisão de direitos fundamentais (ALEXY, 2008).
Outrossim, é perceptível que nos julgamentos citados, a fundamentação dos votos dos componentes da Corte Maior se limita a mera menção das palavras proporcionalidade, razoabilidade e ponderação. Alguns ministros, de forma simplória, mencionam a adequação, a necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, sem elucidar de forma sustentável o sentido e o alcance de cada um destes exames.
E é justamente nesse ponto que Alexy apresentava preocupação: decisões arbitrárias, discricionariedade na tomada de decisões e ausência de uma argumentação jurídica bem desenvolvida (BEBER; BITENCOURT, 2014). Apesar da importante transição do positivismo puro para o neoconstitucionalismo, no período pós-guerra, nos meados do século XX, as raízes daquele movimento ainda são alicerçadas (MAIA; CARNEIRO, 2013).
Trazendo para o contexto do sistema jurídico brasileiro, percebe-se que as decisões dos julgadores podem ter inspirações no pensamento positivista puro, e, por esse motivo, a teoria desenvolvida pelo jurista alemão supracitado não é integralmente aplicada, em que pese possuir forte influência e reflexos doutrinários (THEODORO FILHO, 2016).
Portanto, apresentados esses julgados do STF, cumpre realizar no próximo capítulo um estudo mais específico sobre o princípio da proporcionalidade e sua aplicação prática no caso de aborto, a fim de verificar a sua constitucionalidade, no Brasil.
4 CONSTITUCIONALIDADE DO ABORTO NO BRASIL ATRAVÉS DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Apresentadas algumas concepções teóricas desenvolvidas no século XX, no período pós-guerra, no capítulo I e apresentados julgados do Supremo Tribunal Federal no capítulo II que fundamentaram as decisões tendo como inspiração, dentre outros, os ensinamentos de Alexy, far-se-á neste capítulo um estudo mais específico sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade em um contexto de aborto, ocasião em que coloca os direitos fundamentais da gestante e do nascituro em colisão.
Inicialmente, necessário se faz entender o que é o aborto e quais são suas implicações nas searas social e jurídica, para melhor compreensão. Os doutrinadores Mirabete e Fabbrini (2021, p. 95), define o aborto como sendo “a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção.” Outrossim, Mirabete e Fabbrini (2021, p. 95), explicam que “é a morte do ovo, até três semanas de gestação; do embrião, de três semanas a três meses; ou do feto, após três meses.” Explica também que não é necessário a expulsão do produto da concepção para ser considerado aborto (MIRABETE; FABBRINI, 2021).
Vislumbra-se que o aborto pode ser espontâneo ou natural, quando o próprio organismo da gestante expulsa o produto da concepção, em decorrência de problemas de saúde; pode ser acidental, na hipótese em que existe de fato um acidente com a gestante, como por exemplo, atropelamento, queda, traumatismo, entre outros; e pode ser provocado, que é aquele considerado criminoso pela legislação penal, isto é, praticado pela ação ou omissão da própria gestante ou de terceiro com ou sem consentimento dela (MIRABETE; FABBRINI, 2021).
Quando se fala em aborto, muito se pensa nas causas que o motivaram. Pode existir uma razão moral, haja vista que a gestante pode ter sido vítima de estupro e por este motivo não quer dar continuidade a uma gravidez indesejada; e pode ter motivação econômica e financeira, considerando que a gestante pode não possuir condições financeiras para arcar com as despesas geradas com a criação de um filho (MIRABETE; FABBRINI, 2021).
Além disso, a mulher também pode ter dificuldades para criar um filho porque trabalha o dia todo e não consegue tempo para se dedicar ao acompanhamento do desenvolvimento da criança e também não pode deixar o emprego porque depende dele para sobreviver; e pode haver ainda motivos de caráter individual, inerentes a cada pessoa, a exemplo de concepções particulares com o corpo, autonomia de vontade, liberdade de escolher não ser mãe, entre outras questões intrínsecas a cada ser humano (MIRABETE; FABBRINI, 2021).
Como, em regra, o aborto é criminalizado no Brasil, muitas mulheres, que apresentam algumas das motivações acima mencionadas, buscam realizar tratamentos abortivos ofensivos à saúde em clínicas clandestinas, o que revela ser um problema de saúde pública (MILANI; NORA; CAERAN, 2018, p. 8). Vale destacar que este problema se desenvolve a partir de uma série de situações ligadas ao grau de desenvolvimento do Brasil: falta de oportunidades, desigualdade socioeconômica, baixo poder financeiro, educação falha, dentre outras (MILANI; NORA; CAERAN, 2018). Tudo isso influencia na decisão das gestantes em buscar clínicas clandestinas para realizar o aborto (MILANI; NORA; CAERAN, 2018).
Todo esse aglomerado de problemáticas poderia ser resolvido ou pelo menos minimizado se o Estado enxergasse de uma forma diferente o aborto e ao invés de repreender a gestante, a apresentassem oportunidades e uma educação preventiva e informativa. Isto porque essas mulheres que procuram clínicas clandestinas podem sofrer consequências graves e acabar desenvolvendo traumas, seja físico ou psicológico, e consequentemente procuram o sistema de saúde público para realizar tratamentos pós-aborto[5], algo que poderia ser evitado (ACABAYA; FIGUEIREDO, 2020).
Passando agora para as implicações jurídicas, vale destacar que na legislação vigente é crime o autoaborto e o consentimento no aborto, delitos tipificados no artigo 124 do Código Penal; o aborto sem consentimento da gestante, tipificado no artigo 125 do Código Penal; e o aborto com o consentimento da gestante, delito tipificado no artigo 126 da mesma reprimenda penal.
O autoaborto (art. 124 do CP) é aquele provocado pela própria gestante, utilizando-se de métodos por ela pensados, a exemplo da ingestão de medicamentos abortivos, chás, socos na barriga, entre outros. Outrossim, também se considera o crime quando a mulher recebe auxílio ou é instigada a cometer o aborto (MEDEIROS, 2017). Ou seja, a grávida consente que um terceiro pratique o ato abortivo contra ela e por esse motivo tem sua conduta incriminada (MIRABETE; FABBRINI, 2021). Vale ressaltar ainda que o agente “que provoca o aborto, responde pelo crime previsto no art. 126, em que se comina pena mais severa.” (MIRABETE; FABBRINI, 2021, p. 98).
O aborto sem consentimento da gestante (art. 125 do CP) consiste na prática do ato abortivo sem o consentimento dela, é aquele que ocorre de forma forçada entre quem o força e quem sofre as consequências (NUCCI, 2020). Nesse caso, a mulher também é vítima da prática delitiva. Outrossim, verifica-se que “o terceiro deve saber da gravidez e não é necessária a negativa da gestante, bastando que o abortamento seja executado contra a sua vontade.” (MEDEIROS, 2017, p. 34-35).
O aborto com o consentimento da gestante (art. 126 do CP) é aquele provocado por terceira pessoa, com o consentimento daquela. A gestante responderá pelo crime previsto no art. 124 do CP e aquele que pratica os atos abortivos responderá pelo artigo 126 do CP (MIRABETE; FABBRINI, 2021). Ressalta-se também que, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 126 do CP, na hipótese da gestante ser “menor de 14 anos, ou débil mental ou alienada, ou esse consentimento tiver sido obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, esse consentimento é considerado inválido e caracterizado estará o crime do art. 125 do CP.” (MEDEIROS, 2017, p. 36).
Verifica-se que a legislação penal criminaliza o aborto nas circunstâncias acima mencionadas. Todavia, existem duas exceções legais trazidas pela mesma legislação e uma exceção trazida pela jurisprudência do STF. O artigo 128 do Código Penal dispõe sobre casos de aborto legal, situações em que é permitido o aborto, quais sejam: quando não existir outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) e gravidez resultado de estupro (aborto humanitário). Ademais, a Suprema Corte também decidiu ser admissível o aborto realizado em feto anencéfalo, conforme julgamento da ADPF nº 54 (BRASIL, 2012). Nesse aspecto, o ato abortivo em qualquer uma das situações apresentadas não configura crime, pois, conforme muitos doutrinadores ensinam, trata-se de estado de necessidade, nos termos do artigo 24 da reprimenda penal (MEDEIROS, 2017).
O Supremo Tribunal Federal, no julgado da ADPF n.º 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, decidiu ser admissível o aborto realizado em feto anencéfalo. Conforme explica Maluf (2020, p. 185), “a anencefalia é uma má-formação congênita resultante de defeito de fechamento do tubo neural, estrutura embriológica precursora do Sistema Nervoso Central.” No caso acima citado, a finalidade da ação era declarar inconstitucional a tipificação de crime no contexto apresentado, ou seja, entendia-se que o aborto realizado em face de feto com anencefalia é uma prática que não deveria ser considerada crime, sob pena de ser inconstitucional (BRASIL, 2012).
Pois bem, verificadas essas disposições sobre o aborto e a criminalização no ordenamento jurídico brasileiro, passar-se-á ao contexto da interpretação constitucional de tal prática a partir do referencial teórico envolvendo a colisão de direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade.
Ressalta-se que o aborto gera uma colisão entre direitos fundamentais da gestante e do nascituro, e essa colisão precisa de uma solução. A partir disso, é importante olhar para o princípio da proporcionalidade, que, através do exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, pode ser instrumento cabal para declarar o aborto constitucional.
Posto isso, cumpre deliberar sobre esses direitos. De um lado existem os direitos fundamentais da mulher, tais como a autonomia privada, a autodeterminação do próprio corpo, a liberdade, o direito reprodutivo/sexual, o direito à saúde, direito à igualdade e a dignidade humana; do outro há o direito fundamental do nascituro de nascer com vida.
O aborto gera uma discussão muito grande, haja vista que divide opiniões e pensamentos. Se existem defensores desse ato, há também aqueles que condenam a prática abortiva. E por essa razão, a fim de buscar uma solução para essa dicotomia, necessário se faz utilizar a técnica da proporcionalidade idealizada pelo jurista alemão (ALEXY, 2008).
Na perspectiva do nascituro, busca-se assegurar com a criminalização do aborto o direito à vida. Sobre este direito, o doutrinador Lenza (2020, p. 1182), ensina que “o direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.”
Outrossim, necessário se faz deliberar que o direito à vida é uma cláusula pétrea, um direito fundamental estabelecido no texto constitucional brasileiro. Trata-se de um direito inerente a todo ser humano. A autora Maluf (2020, p. 150) ensina que “a vida é o bem supremo da existência, seu valor mais precioso; prevalece sobre todos os demais direitos existentes; de sua proteção emanam todos os direitos e deveres dos homens, seja oriundo das leis, dos códigos morais, dos costumes ou da ética”.
Vislumbra-se que essas definições são chamativas, supervalorizam a vida, o que é perfeitamente compreensível, pois refere-se a um direito que por natureza é imprescindível ao homem.
Entretanto, algumas ressalvas são necessárias, haja vista que “o direito à vida não é absoluto, seja pelo próprio comando constitucional, que admite a pena de morte no caso de guerra declarada, seja em razão de interpretações já fixadas pelo STF no julgamento da ADPF 54.” (LENZA, 2020, p. 1187). Ou ainda, pelo fato de que existe uma relativização dos direitos fundamentais, inclusive abrangendo o direito à vida.
Conforme ensina Lenza (2020), a legislação penal, especificamente o Código Penal, ao tipificar o aborto como crime, não realizou nenhuma distinção ou fez alguma colocação sobre o momento da gestação para a caracterização de crime, sendo exigido apenas a constatação da gravidez e a sua interrupção, nos moldes dos artigos 124 ao 127 do Código Penal.
É interessante destacar que o Supremo Tribunal Federal fomentou o debate acerca do aborto no Brasil, através da 1ª Turma, com o julgamento do Habeas Corpus nº 124.306. No feito, a turma em questão “[...] teve de decidir sobre a concessão de habeas corpus a integrantes de uma clínica que realizaram, a pedido da gestante, a interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre desta.” (MILANI; NORA; CAERAN, 2018, p. 76). O professor Lenza (2020, p. 1188) comenta que a referida Turma “conferiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 124 a 126 do Código Penal para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.”
Vislumbra-se que a criminalização do aborto de forma ferrenha causa consequências ao arranjo jurídico e principalmente às mulheres, pois infringe os direitos sexuais e reprodutivos delas, haja vista que o Estado não deve obrigar que a gestante tenha uma gravidez indesejada. É atingida também a autonomia da mulher, pois ficam prejudicadas as escolhas particulares e as concepções existenciais dela (LENZA, 2020).
Delibera-se ainda que a integridade física e psíquica da gestante também é afetada, pois a gestação causa efeitos e influencia o estado emocional e físico; e tem-se o problema de igualdade, porque nos casos relacionados ao aborto, a escolha da mulher deve ser respeitada para existir uma equiparação de gêneros (LENZA, 2020). Não se pode esquecer também da dignidade humana, pois uma mulher que não tem o direito de dispor do próprio corpo e de fazer valer sua liberdade, há, consequentemente, uma limitação da dignidade dela (LENZA, 2020).
É necessário verificar também que o Ministro do STF, Barroso, no seu voto vista, no HC nº 124.306, analisou o princípio da proporcionalidade, considerando a tipificação penal que é atribuída ao aborto e as consequências oriundas às gestantes, tais como os problemas de saúde pública ocasionados pela clandestinidade nas práticas abortivas, a vulnerabilidade financeira que muitas das gestantes possuem, problemas de ordem psicológica e física, que podem ser até irreversíveis, entre outras consequências atreladas à violação de direitos fundamentais, tais como a liberdade, a igualdade, a autonomia, a privacidade, dentre outros (BRASIL, 2017).
Realizados esses estudos sobre os direitos fundamentais da gestante e do nascituro em situação de colisão, cumpre deliberar sobre a constitucionalidade do aborto a partir da utilização do princípio da proporcionalidade e os exames dele decorrentes, conforme foi proposto por Alexy (2008): a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
No caso do aborto estão em colisão os direitos reprodutivo/sexual, a liberdade, a igualdade, a autonomia e a dignidade humana da gestante (P1) e em contrapartida o direito do nascituro de nascer com vida (P2). Dessa colisão, se buscaria um meio adequado (M1), todavia, como há uma complexidade grande em buscar este meio adequado, percebe-se que o exame da adequação não é suficiente para solucionar a colisão existente, levando-se em consideração os ensinamentos de Alexy (2008).
A medida adequada poderia ser a criminalização do aborto (M1) para proteger a vida do nascituro (P2), entretanto, considerando que a criminalização atinge drasticamente os direitos da gestante (P1), isso não demonstra ser o mais correto. Destaca-se que a criminalização do aborto de forma ferrenha e em caráter absoluto “constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro.” (BRASIL, 2017). Ou seja, a tipificação penal não evita o aborto, pelo contrário, ao invés de diminuir os procedimentos abortivos, aumenta-se a quantidade de mulheres que procuram clínicas clandestinas para realizarem o abortamento, revelando-se um problema de saúde pública e de ausência de políticas públicas eficazes.
O exame da necessidade consiste em buscar um meio (M1) que seja menos gravoso para alcançar um objetivo determinado. Ressalta-se que a criminalização do aborto (M1) não é uma medida suficientemente adequada, pois confronta severamente os direitos da gestante (P1) e não é uma medida menos gravosa, haja vista que não evita o aborto e o fim do produto da concepção (P2), apenas camufla a realidade dos fatos.
Nessas circunstâncias, há de se ressaltar que o Estado pode, e recomenda-se, evitar “a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas.” (BRASIL, 2017). Ou seja, não é criminalizando o aborto que o Estado vai evitar que eles ocorram. Existem outras formas de diminuir a prática abortiva sem restringir os direitos da gestante e sem colocar o direito à vida em uma situação hierarquicamente superior aos demais mandamentos fundamentais. Nesse sentido, a necessidade não se revela um exame suficiente e proporcional para solucionar a colisão existente.
Por último, tem-se a proporcionalidade em sentido estrito. Neste subprincípio se verifica “a intensidade da restrição do direito atingido e a importância da efetivação do outro direito colidente.” (CARDOSO, 2016, p. 149). Com a criminalização do aborto (M1), se busca proteger o direito do nascituro de nascer com vida (P2) e se tem a restrição dos direitos fundamentais da gestante, como a liberdade, a igualdade, a autonomia, a dignidade humana, dentre outros (P1). Este exame tem como objetivo estabelecer qual direito deve ser protegido diante do caso de aborto: “o direito atingido com a medida ou o direito que a medida quis prestigiar.” (CARDOSO, 2016, p. 149). Pois bem, com o meio utilizado apontado acima (M1), tem-se que os direitos da mulher são violados (P1) e o direito à vida do nascituro é prestigiado (P2).
Neste exame se faz necessário realizar o sopesamento dos direitos colidentes. Ressalta-se que, como foi estudado, a criminalização do aborto camufla o número de abortos no Brasil, passando a ideia de que é uma medida eficiente, mas na realidade não é exatamente isso que ocorre, haja vista que as gestantes, diante da repreensão do Estado, buscam realizar o procedimento abortivo em clínicas clandestinas e tal fato pode gerar custos sociais, como problemas de saúde pública e mortes, em decorrência das sequelas dos tratamentos clandestinos (BRASIL, 2017).
Ao invés da criminalização gerar benefícios à sociedade e ao ordenamento jurídico, ocorre o contrário, a hierarquização do direito à vida sem um aprofundamento de estudos no contexto do aborto não garante o nascimento do nascituro e a sua existência de forma digna. Outrossim, a propagação da educação informativa e preventiva, bem como a disseminação de políticas públicas por parte do Estado, acerca das consequências trazidas pela não utilização de métodos contraceptivos nas relações particulares, podem despertar mais interesse e maior grau de instrução no meio social.
Ao ponderar a colisão existente, utilizando-se a criminalização do aborto como um meio adequado (M1), os direitos da gestante (P1) são severamente atingidos e o direito do nascituro de nascer com vida (P2) é protegido, prestigiado. Todavia, esse sopesamento apresentado não é o mais correto e não se justifica, em decorrência de tudo que foi apresentado no decorrer do presente estudo.
A criminalização do aborto não é uma medida adequada e proporcional, porque a liberdade, a autonomia, a privacidade e a dignidade da gestante são sacrificados arbitrariamente; as mulheres, por ausência de apoio do Estado, procuram clínicas clandestinas para realizar o abortamento; o pós-aborto clandestino é marcado por consequências à saúde da gestante, de ordem física e psicológica, fazendo com que a procura por tratamentos das sequelas em hospitais públicos aumentem; a prática abortiva continua ocorrendo de forma ilegal e ofensiva à saúde; e as mulheres pobres, com baixo poder aquisitivo, são as maiores vítimas da ausência de políticas públicas.
Ante o exposto, cumpre ressaltar que a técnica da ponderação, desenvolvida por Alexy (2008), pode resolver a colisão entre os direitos fundamentais da gestante e do nascituro, dando maior peso aos direitos da mulher em gestação, levando-se em consideração todo o contexto acima mencionado, sendo possível assim, declarar o aborto constitucional.
Embora haja o sacrifício do direito do nascituro de nascer com vida, não seria razoável desconsiderar os problemas sociais apresentados e sacrificar os direitos da gestante. Necessário destacar que, em um contexto de descriminalização do aborto, se o Estado promover políticas públicas voltadas para a educação, inclusive a sexual, para a saúde, para a economia, buscando a igualdade e o tratamento isonômico, em concomitância a isso, as mulheres seriam instruídas durante os tratamentos com médicos e psicólogos, podendo até desistir de praticar o aborto, sem que isso prejudicasse os direitos a ela inerentes. Nesse caso, o direito do nascituro de nascer com vida poderia até ser preservado. Logo, o que se verifica é que tratar o aborto como crime não está gerando frutos positivos à sociedade a ao ordenamento jurídico, pelo contrário, apenas camufla e esconde os problemas relacionados à falta de políticas públicas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade evolui com o passar do tempo, os anseios e as necessidades sociais surgem, transformações se acentuam, e, em paralelo a todo esse processo, o Direito precisa ser inserido, os sistemas jurídicos precisam recepcionar novas ideias, novas concepções, a fim de garantir direitos inerentes a cada indivíduo que faz parte do meio social. Como exemplo dessa mudança, há a transição existente entre os períodos pré-guerra e pós-guerra. Neste contexto, o comportamento social e a postura dos Estados frente aos arranjos político, econômico, jurídico e social mudaram, considerando a inserção de direitos humanos e direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos, em prol da democracia, da cidadania, das liberdades, da segurança jurídica e, especialmente, da concretização da dignidade da pessoa humana.
No período pós-guerra, no século XX, pensamentos e correntes teóricas foram sendo desenvolvidas em contraposição às concepções do positivismo jurídico lógico; e pensadores/juristas como Dworkin e Alexy deixaram seus legados. Um movimento foi se fortalecendo nesse contexto: o neoconstitucionalismo. Buscava-se com este a promoção dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos.
Nessa perspectiva, a exemplo de outros Estados, o Brasil também consagrou os direitos fundamentais no ordenamento jurídico interno, haja vista que tais direitos foram inseridos na Constituição Federal, promulgada em 1988. Liberdade, igualdade, propriedade, segurança, inviolabilidade à vida, todos esses, entre outros, estão inseridos no artigo 5º do texto constitucional brasileiro. E é nessa circunstância que surgem as colisões, considerando uma maior possibilidade dos prismas constitucionais se colidirem, em decorrência dos muitos que são positivados na Carta Magna.
Observa-se que, diante de situações concretas, os direitos fundamentais podem se colidirem, como se pode observar no caso de aborto, ocasião em que os direitos da gestante colidem com os direitos do nascituro, o que necessita de solução. Para tanto, uma das formas de solucionar essa colisão, conforme foi estudado, é utilizar o princípio da proporcionalidade e a técnica da ponderação, teoria desenvolvida pelo jurista alemão Alexy.
Outrossim, faz-se necessário pontuar também que os direitos fundamentais não são absolutos, inclusive o direito à vida, em razão da característica da relatividade. E a partir disso, diante de casos e situações concretas, como existem muitos mandamentos fundamentais e considerando que eles podem ser relativizados, surgem muitas colisões.
Vislumbra-se que o presente trabalho foi desenvolvido a partir da delimitação do seguinte tema: A declaração de constitucionalidade do aborto no ordenamento jurídico brasileiro através da aplicação do princípio da proporcionalidade.
Observa-se também que a problemática desenvolvida no presente estudo consistiu na seguinte indagação: a aplicação do princípio da proporcionalidade é técnica de interpretação cabal para fundamentar a declaração de constitucionalidade ou não do aborto no Brasil?
Nesse sentido, há de se ressaltar que a problemática acima indagada foi respondida e ainda foram apresentadas outras problemáticas envolvendo saúde pública, educação, desigualdade social, entre outros, no decorrer do estudo e da pesquisa em apreço.
Necessário destacar que a criminalização do aborto, tal como ocorre no ordenamento jurídico brasileiro, não evita que os abortos ocorram, apenas camufla o que acontece, pois, embora haja a tipificação criminal que reconheça o abortamento como crime, a função punitiva do Estado não é efetiva. Isto porque, como se pôde entender no presente estudo, muitas gestantes com baixo poder aquisitivo, não desejando a continuidade da gestação, procuram clínicas clandestinas para abortar, o que gera consequências a ela, tal como, traumas psicológicos, traumas físicos, não expulsão correta do produto da concepção, entre outras. E para tratar esses problemas pós-aborto clandestino, muitas mulheres socorrem aos hospitais públicos e ao SUS, gerando maior custo e gastos ao poder público.
Ou seja, o aborto não deixou de existir, pelo contrário, ocorre clandestinamente e ainda pode gerar muitos problemas de saúde à gestante, razão pela qual resta evidenciado que a criminalização ferrenha não é a medida mais adequada e proporcional.
Uma vez descriminalizado, as mulheres terão liberdade para conversarem sobre o aborto, o Estado pode inserir políticas públicas de conscientização voltada para a educação sexual e o uso de métodos contraceptivos; uma mulher que pretende abortar poderá ser aconselhada a não realizar o ato pelos profissionais médicos, sem que a liberdade, a autonomia privada e a dignidade humana sejam violadas. Nesse sentido, realizando o tratamento legal em hospitais ou clínicas, as gestantes terão mais apoio do Estado, a procura por clínicas clandestinas pode diminuir e em concomitância a isso as sequelas psicológicas e físicas poderão também regredirem.
O objetivo geral, que é demonstrar se o aborto é constitucional ou não, utilizando-se da técnica da ponderação, foi atingido, pois, com base no que foi apresentado, demonstrou-se que o aborto pode ser, de fato, declarado constitucional, considerando os inúmeros problemas que a criminalização drástica pode ocasionar.
E para ser possível alcançar o objetivo geral acima citado, também foram auferidos os objetivos específicos, haja vista que foi conceituado o princípio da proporcionalidade como sendo uma técnica de interpretação analítica de resolução de colisão de direitos fundamentais; foram apresentados julgados do Supremo Tribunal Federal que fundamentaram as decisões, com base na técnica da ponderação desenvolvida por Robert Alexy; o conceito de aborto, as modalidades existentes e a forma que ocorre no brasil foram apresentas, conforme se observa do exposto no capítulo III; e foi aplicada, explicada, a técnica da ponderação na colisão existente entre os direitos fundamentais da gestante e do nascituro, demonstrando-se que a prática abortiva pode ser declarada constitucional, em decorrência das causas que a motivam a acontecer e das consequências acarretadas pela criminalização, o que se revela problemas de saúde pública, educacional e de desigualdade socioeconômica.
Portanto, diante do exposto, é importante destacar que o debate sobre o aborto é algo necessário, em decorrência da sua relevância social, e jurídica. O Estado deve desenvolver políticas públicas para evitar a clandestinidade e, consequentemente, os problemas de saúde pública, educacional e de desigualdade socioeconômica. Os direitos da gestante devem ser resguardados, uma vez que a criminalização não diminui o número de abortos, apenas faz com aconteçam escondidos e ilegalmente.
Outrossim, o direito do nascituro de nascer com vida não precisa ser atingido se o Estado colocar em prática as políticas públicas citadas. Na hipótese de ser atingido, em uma situação de colisão, o direito à vida pode ser relativizado, considerando que não possui caráter absoluto e que se colocá-lo em contraposição aos direitos da gestante, estes devem ser preponderantes, pois as consequências geradas pela criminalização do aborto afetam a mulher em gestação de forma muito grave, conforme foi elencado no decorrer do presente trabalho.
REFERÊNCIAS
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BEBER, Augusto Carlos de Menezes; BITENCOURT, Caroline Müller. Um breve ensaio sobre as contribuições da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy para o controle da decisão na atuação jurisdicional. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 7., MOSTRA DE TRABALHOS JURÍDICOS CIENTÍFICOS, 11., 2014. Santa Cruz do Sul. Anais [...]. Santa Cruz do Sul: Universidade Santa Cruz do Sul, 2014. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwjHzKnK9dfzAhXKqZUCHTiBBYwQFnoECAIQAQ&url=https%3A%2F%2Fonline.unisc.br%2Facadnet%2Fanais%2Findex.php%2Fsidspp%2Farticle%2Fdownload%2F11724%2F1629&usg=AOvVaw2_ni8anA-G8L8UI417-hog. Acesso em: 22 set. 2021.
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[1] Mestra em Direito. Professora da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP).
[2] Mestra em Letras. Professora da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP).
[3] Para o autor Alexy (2001 apud LEAL, 2014), a concepção positivista de interpretação e aplicação do direito é falha, haja vista que algumas situações práticas ficam prejudicadas, como por exemplo, a “imprecisão da linguagem do Direito dificulta a interpretação/aplicação”; sempre existirá conflitos entre normas; não existem “normas jurídicas que se amoldem a casos de alta complexidade temática”; e haverá “casos especiais que demandarão decisões que contrariem textualmente estatutos normativos.” (LEAL, 2014, p. 135). E diante dessas questões, a teoria da argumentação jurídica desenvolvida por Alexy busca demonstrar que as decisões dos julgadores devem ser pautadas em uma análise racional e didático-argumentativa do objeto estudado
[4] Habeas Corpus nº 82424; ADI nº 1802; ADI nº 855; ADI nº 6586; e ADI nº 1724.
[5] De acordo com uma matéria do G1, de São Paulo, publicada em 20/08/2020, por Cíntia Acayaba e Patrícia Figueiredo, o “SUS fez 80,9 mil procedimentos após abortos malsucedidos e 1.024 interrupções de gravidez previstas em lei no 1º semestre de 2020” (2020, não paginado). Ainda de acordo com a reportagem, no período entre janeiro e junho de 2020 o SUS realizou 1.024 abortos legais e “80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto.” (ACABAYA; FIGUEIREDO, 2020, não paginado). Esses números demonstram que, em decorrência do não acesso das mulheres ao procedimento abortivo eficaz e legal, o próprio SUS arca com os custos e gastos dos tratamentos pós-abortos clandestinos (ACABAYA; FIGUEIREDO, 2020).
Artigo publicado em 15/11/2021 e republicado em 31/10/2024.
Graduado do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins - FCJP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, LUCAS JULIÃO DA. A declaração de constitucionalidade do aborto no ordenamento jurídico brasileiro através da aplicação do princípio da proporcionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /57436/a-declarao-de-constitucionalidade-do-aborto-no-ordenamento-jurdico-brasileiro-atravs-da-aplicao-do-princpio-da-proporcionalidade. Acesso em: 26 dez 2024.
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